top of page
  • Foto do escritorFernanda Polo

Loucura em família

A família Kaempf, proprietária do antigo sanatório de Santa Cruz do Sul, conta como é morar em uma clínica psiquiátrica e fala sobre a venda e a mudança do prédio de 130 anos

Uma família em frente a uma casa antiga, com "A mudança: a despedida não é o fim, mas o início de uma saudade".
Ivo, Cynara e Zilda Kaempf preparam a mudança para a casa nova / Foto: Fernanda Polo

Teaser da reportagem / Imagens aéreas: Felipe Polo


“As pessoas achavam muito estranho. Tu dizer que mora dentro de um sanatório não era muito comum”, conta Cynara Kaempf, 54 anos, sentada na poltrona da sala de casa. Seus pais, Ivo e Zilda, batem papo e acompanham o diálogo reminiscentes e com muito bom humor. Enquanto conversam do lado de dentro, a chuva e o silêncio permeiam o exterior. A casa é antiga e fica localizada ao pé de uma colina coberta por uma densa mata, em Santa Cruz do Sul, cidade a 150 km de Porto Alegre. A sala onde estão é charmosa e retrata a vida de uma família em um lar normal. No entanto, a situação dos Kaempf não é nem um pouco ordinária. No casarão ao lado, conectado à casa por uma pequena passarela, funcionava o antigo Sanatório Kaempf, como era comumente conhecido — ou Vida Nova, em seus últimos anos. Ele pertencia à família Kaempf desde a sua fundação, no final do século XIX, e consolidou-se como um lugar histórico em Santa Cruz. A única diferença entre essa e qualquer outra clínica psiquiátrica era que, além dos pacientes, uma família também morava nas suas dependências. O pai, Ivo Kaempf, 83 anos, nasceu lá mesmo, assumiu a administração e criou os filhos ali; o seu irmão, Rubem Kaempf, também morava com os familiares na propriedade. O local, que funcionou como clínica até 1999, sempre abrigou a família, que possui uma porção de histórias sobre experiências vividas e tentativas de salvar o lugar. Em 2018, no entanto, na véspera dos 130 anos do Sanatório, a propriedade foi vendida e, em setembro deste ano, a família finalmente se mudou.


“Era bem difícil para as pessoas entenderem. Para a gente, era como morar em qualquer lugar. Eu adorava, adoro.” Cynara Kaempf

O Sanatório Kaempf foi fundado em 15 de novembro de 1889, dia da Proclamação da República. O alemão e médico naturalista Carl Hermann Eduard Käempf veio para o Brasil em 1882 para exercer sua profissão. Seus tratamentos eram hidroterápicos, à base de água e barro. Carl mudou-se para Santa Cruz do Sul, onde começou a construir, em 1886, o futuro Vida Nova. O Sanatório começou com apenas dois quartos. Em 1905, a parte maior do hospital começou a ser construída, levando 20 anos para ser finalizada. O local tornou-se, então, um hospital geral, atendendo principalmente doenças reumáticas e realizando a hidroterapia.


Um casarão antigo, onde funcionava o Sanatório Kaempf.
Sanatório Kaempf, fundado em 1889 e fechado em 1999 / Foto: Fernanda Polo

Em 1918, Carl faleceu; seu filho, Arthur Valter Kaempf, continuou com os tratamentos hidroterápicos até 1956, quando também faleceu. O local permaneceu como hospital geral até 1973. Nesse ano, iniciou-se o período de clínica psiquiátrica, que perdurou até 1999, tendo essa como sua única função. Quando a clínica fechou, nesse mesmo ano, o local transformou-se no Recreio Vida Nova, com internos remanescentes e pensionistas. A instituição existiu até junho de 2018, quando foi vendida. Até 1999, 80 mil pessoas haviam passado pelo Sanatório Kaempf.

Para Cynara, morar no Sanatório era uma coisa normal, porque era o ‘mundo’ que ela conhecia. A família morou a vida inteira lá, desde que o local foi fundado. Cynara conta que as pessoas se assustavam quando ela mencionava que morava em um sanatório. “Eu não conseguia ver essa diferença, por estar a vida inteira, crescer aqui dentro, estar sempre aqui”, confessa. Ela conta, ainda, que as pessoas tinham curiosidade em saber como era — se ela morava dentro do sanatório, com os pacientes, como era a convivência. Sua resposta era que eles ficavam soltos e que o local sempre foi aberto, nunca com grades ou portões. “Era bem difícil para as pessoas entenderem. Para a gente, era como morar em qualquer lugar. Eu adorava, adoro”, afirma.

A família sempre esteve envolvida no Sanatório, noite e dia, devido à necessidade de registrar pacientes a qualquer hora, e era “tudo misturado”. A vida dos Kaempf era tão integrada à do Sanatório que até mesmo comiam a mesma comida que os internos, em um refeitório separado dentro do prédio. A lembrança mais marcante que Cynara possui do Sanatório é a convivência com os pacientes. Quando ela e seus irmãos eram crianças, por exemplo, as festas de aniversário eram todas lá, com os pacientes soltos — o que para eles era normal.


Uma casa antiga com uma torre parecida com a de um castelo.
Casa da família Kaempf, ligada ao prédio principal do Sanatório / Foto: Fernanda Polo

Muitas pessoas chegavam e ficavam por muito tempo no Sanatório, abandonadas por suas famílias. Alguns desses pacientes marcaram os Kaempf, pois criaram vínculos afetivos com eles. O paciente Nelson*, por exemplo, tinha uma relação quase familiar com os membros da família. Ele comia junto com eles, participava de datas festivas e até mesmo recebia presentes. Nelson morou 57 anos no local.


Apesar da normalidade com que eles encaravam a situação, a instituição sempre foi motivo de tabu na cidade. Para a população, o Sanatório era apenas um manicômio, e as pessoas tinham medo do lugar e dos pacientes que lá estavam internados, o que também gerava um estigma social.


Corredor do Sanatório, passagem para a casa da família Kaempf, dormitório dos internos (e posterior hospedaria) e jardim / Fotos: Fernanda Polo


“Nada nos pertence. Só estamos ocupando, tudo é emprestado.” Ivo Kaempf

Foi com a criação da lei estadual 9.716 de 1992, chamada de Lei Antimanicomial (precursora da lei nacional 10.216/2001), que as coisas começaram a mudar. Com a sua promulgação, instaurou-se uma reforma psiquiátrica no país: ficou impedida a ampliação de hospitais psiquiátricos, e os requisitos para internação compulsória foram modificados. O criador da lei precursora no Brasil, o ex-deputado e jornalista Marcos Rolim, afirma que ela deixou claramente indicado que esse era o caminho. “Recursos comunitários de atenção à saúde mental, onde as pessoas pudessem todos os dias ser atendidas, ser tratadas, de tal maneira que se prevenisse o surto. Na medida em que nós fôssemos prevenindo o surto psiquiátrico, tratando as pessoas, nós diminuiríamos a demanda de internação, que foi exatamente o que aconteceu.” Após a reforma psiquiátrica, então, o Sanatório Kaempf, enfrentando dificuldades financeiras, foi encerrado.


Tempos sombrios

No século passado, os tratamentos medicinais eram diferentes dos de hoje. “Há 25 anos, praticamente o único recurso que se tinha para o tratamento de pessoas com algum sofrimento psíquico, alguma doença mental, era a internação psiquiátrica”, afirma Rolim.


Uma sala vazia, apenas com uma TV antiga.
Sala de descanso e lazer / Foto: Fernanda Polo

As doenças mais comuns tratadas no Sanatório eram depressão, alcoolismo, uso de drogas e até mesmo estresse. Pessoas do Brasil inteiro iam até o local buscar tratamento, e todos, ricos e pobres, ficavam juntos, convivendo no espaço comum. No entanto, como em um manicômio, muitos pacientes chegavam com surto e tinham de ser separados do convívio com as outras pessoas. Esses pacientes eram colocados na ala localizada atrás do Sanatório, com grades, chamada de “pavilhão de isolamento”. Eles eram, então, isolados por três ou quatro dias, até que o surto passasse. Uma vez passado o surto, o paciente era integrado junto aos outros no Sanatório e ia para um dos quartos normais.


Foi somente com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em 1992, que os hospitais psiquiátricos realmente perderam a força. Com o avanço dos cuidados mentais, os tratamentos e a maneira de encarar as doenças mudaram. “A saúde mental teve uma melhora bastante importante com essas leis de reforma no Brasil inteiro, especialmente porque elas estimularam a criação de serviços alternativos de tratamento. Onde foram abertos esses serviços, a situação melhorou muito”, reforça Rolim.


Melissa Dorneles, psicóloga do CAPS II de Santa Cruz do Sul, atende moradores do município e ex-pacientes do Sanatório Kaempf. Ela ressalta que os Centros não são a solução para tudo, mas são essenciais. “Eu estou há 16 anos trabalhando nessa área e aposto nisso, porque vejo as pessoas melhorando através do cuidado em liberdade”, afirma.


“Pavilhão de isolamento” onde os pacientes eram isolados, cozinha e refeitório do Sanatório e entrada principal / Fotos: Fernanda Polo

Vida nova

Para a família, ficou cada vez mais difícil sustentar o Sanatório. Depois que ele fechou, em 1999, os Kaempf ainda tentaram salvar o lugar: transformaram o prédio em uma hospedaria, mas as pessoas ainda tinham muito medo de ficar hospedadas em um antigo sanatório. Depois, abrigaram um restaurante vegetariano — que também não vingou. Ivo, junto de seus dois sócios, decidiu, então, vender a propriedade. Em 2018, apareceu o comprador: a faculdade Dom Alberto. O lugar ainda funcionava como uma pensão mensal, com inquilinos, quando foi adquirido. Agora, a família Kaempf enfrenta a mudança para uma nova casa.


Ivo afirma que nada se leva, mas sabe que a casa vai deixar saudades. “Nada nos pertence. Só estamos ocupando, tudo é emprestado.” Ainda assim, acredita que a mudança será um choque. A propriedade será entregue ainda em 2019, e a faculdade se comprometeu a cuidá-la, preservando a mata e reformando o prédio principal, sem destruí-lo — o que fez a alegria de Ivo. “Achei a melhor coisa que teve. A minha preocupação era que ninguém ia cuidar da área verde”, conta. O momento de despedida tornou-se mais tranquilo, pois, mesmo com o encerramento de uma história, o lugar se manterá vivo através de uma boa causa — a educação. Na frente da propriedade, Ivo deixa uma reflexão sobre a mudança: “A despedida não é o fim, mas o início de uma saudade.”


*O nome foi trocado para preservar a identidade do paciente.

Existe uma diferença entre sanatório e manicômio, mas os dois termos são comumente confundidos. Sanatório vem do termo “sanar” e é o lugar onde são tratados diversos tipos de doenças e onde, antigamente, tratava-se a tuberculose; já o manicômio ou hospício é o lugar onde são tratadas pessoas com transtornos mentais.
0 comentário

Posts Relacionados

Ver tudo
bottom of page